sexta-feira, 13 de março de 2009

O “enochato” ou o “enófilo acidental”‏




Entrou na loja quase tremendo, com os olhos marejados. Aquela era "A Loja", a que o professor Bruno falava nas aulas da ASB – ATV, o pomposo nome da Associação dos Sommeliers Brasileiros – Amigos do Taste Vin. Nas aulas do curso de degustação básica, aquele que abriria as portas do céu para os apreciadores dele – a bebida sagrada, o néctar dos deuses! O vinho!
Tinha concluído o curso. Agora era sommelier diplomado! Nada mau para quem há pouco só tomava cerveja ou, no máximo, um vinho alemão bem gelado, daqueles de garrafa azul.
"A Loja" era enorme. Ar refrigerado. Prateleiras e mais prateleiras com milhares de garrafas deitadas, dispostas em ordem rigorosa. À esquerda, o velho mundo. Itália, Portugal, Espanha, França. À direita, Estados Unidos, Chile, Argentina, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia. O mundo novo. Do vinho e para ele. Até uma estante só para o Brasil havia.
Parou à porta, respirou fundo e entrou. Vestido para a ocasião. O seu melhor terno. Aquele escuro de lã inglesa. A gravata mais cara, de seda italiana. Lencinho no bolso, combinando com a gravata. Pouco importava que era sábado, dez horas da manhã e que lá fora o asfalto quase derretia sob o sol causticante.
Suava. Mas não de calor. De emoção.
Foi logo para a França. As prateleiras. E começou a examinar os rótulos com ar de entendido. Expert do vinho, Robert Parker tupiniquim que num piscar de olhos mudaria o preço do mercado mundial.
Entre delírios e quase gritinhos de pura euforia, apareceu o atendente. Novinho, vestido de branco, com um lenço na cabeça. Bem moderno. Bem europeu. O máximo!
" – Excelente vinho", falou, mostrando a garrafa que trazia à mão. Também, tinha que ser. Um Borgonha branco – "...e se é Borgonha branco tem que ser Chardonnnay!...", ressoaram as palavras do professor Bruno – que custava quatrocentos reais!
" – É. Boa safra. Bom produtor." Respondeu. Com ar meio blasée. Impessoal. Mas por dentro tremia todo. Quase sem ar.
" – Eu posso ajudar o senhor?"
" – Não sei. Pode?"
" – O senhor gostaria de provar alguma coisa?" Quem sabe um Borgonha?"
" – Quem sabe."
" – Posso lhe mostrar alguma coisa de categoria?"
" – Uh, uh!"
" – Vamos para a sala de vidro!"
A sala de vidro. O professor Bruno tinha falado nela. Ficava bem no meio da loja. Um cubo de vidro cheio de garrafas. Garrafas especiais. Especialíssimas. E no seu primeiro dia de visita "à Loja" já tinha sido convidado para conhecê-la. Demais!
Assim que passou a porta de vidro aberta pelo atendente já viu de relance, à sua esquerda, uma garrafa de Petrus 1975. Oito mil reais! E à direita um Mouton Rotschild 2000, de rótulo de ouro. Mais dois mil e quinhentos reais! No fundo, uma garrafa Magnum – aquela grandona – do Chateau d'Yquém! Outros tantos milhares de reais! Nunca iria beber um vinho daqueles.
Mas ficou firme. Continuou com o ar blasée. E nem viu quando o atendente abriu uma garrafa ao lado. Apenas sentiu um odor súbito tomando o ar frio do cubo de vidro. Um odor que não sabia o que era, mas que se tratava do cheiro mais maravilhoso que já tinha sentido. Parecia um buquê de mil flores perfumadas, mas com cheiro de terra também! Terra recém molhada pela chuva! "Estou viajando!..."
O atendente despejou num copo de cristal bojudo, daqueles com pé alto – muito diferente dos de prova utilizados no curso de vinhos – classudo. Entregou-lhe a taça e se postou ao lado, respeitoso.
Repassou todas as lições do professor Bruno. Colocou a taça contra a luz e fez cara de que apreciou a cor meio pálida, meio acastanhada, do vinho por trás do cristal. Inclinou a taça e procurou pela orla aquosa que indicava a evolução do vinho. E surpresa! Ela estava lá! Aonde o vinho tocava a parede da taça, ele era transparente. Do jeito que o professor falava na aula, mas que os alunos nunca tinham conseguido ver naqueles vinhos meia-boca servidos para serem degustados. Degustados! Pois sim!
Levou a taça ao nariz, as lições repassadas mentalmente, e aspirou. Quase desmaiou tamanha a quantidade de odores que vieram! Isso sim é que é vinho! Se esse que eles dão para provar é bom assim, imagine os "quentes", os de preço proibitivo que repousavam lânguidos ali ao lado, bem à mão!!!!
Agüentou firme. O ar blasée continuou. Percebeu que o atendente estava admirado.
Levou o vinho à boca. Nunca tinha bebido nada igual. Aliás, nunca tinha bebido ou comido ou provado nada parecido com aquilo. Que maravilha! Devia ser um vinho muito bom. "Se custar até uns cem reais a garrafa, eu levo!", pensou. "Para começar a minha adega por cima!" Extravagância que seria praticada sem o conhecimento da mulher. "E vou guardar o vinho na gaveta de legumes da geladeira." Já tinha pensado nisso. A gaveta de legumes seria a sua adega particular. A mulher que pusesse as verduras em outro lugar.
Chacoalhou o vinho dentro da boca. Quase gargarejou. E notou pelo canto do olho que três outros atendentes, um deles de smoking e com ar de gerente, olhavam com ar espantado do lado de fora da sala de vidro.
Havia uma pequena pia de aço inoxidável no cantinho da sala. E se lembrou de uma foto do Parker junto a uma pia igualzinha. Não se esqueceu da lição. Estava provando, tinha que cuspir. Depois de chacoalhar bem o vinho na boca, mirou, aproximou-se da pia e cuspiu. O vinho escorreu em círculos marcando o aço de vermelho e sumiu lentamente no ralo. Ao mesmo tempo em que o gerente – é, era o gerente – entrou no cubo.
" – Você!", disse para o atendente, " – O que você está fazendo!?" " – Que garrafa você abriu?!" " – Você está louco?!"
" – E você!" – dirigindo-se para mim – "você cuspiu?"
" – Fora! Os dois para fora! Fora!" disse alucinado.
Do lado de fora, ombro a ombro com o ex-atendente novato, ainda acho que entendi alguma coisa, em meio ao choro convulsivo do gerente. Algo como " – Não se cospe um Romanée Conti 1964!!!". A garrafa mais cara da loja que o atendente quis servir ao cliente importante no seu primeiro dia de serviço.

Um comentário:

  1. O que é isso? Teria a loja seguro de responsabilidade social? Rsss

    Abraços

    Paulo Queiroz
    http://nossovinho.com/

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